#ÉCapacitismoQuando: Nick Vujicic vem para o Brasil!

 

Me lembro da primeira vez que vi Nick Vujicic. Já faz um bom tempo. Foi por coincidência através de um de seus vídeos no YouTube [assista aqui]. Nick aparecia intrépido, comunicativo, motivador. Sem as pernas e braços, Nick, sobre uma mesa, palestra para milhares de espectadores. Eles e elas olham hipnotizados para Nick, que retribui com doces olhares, sorrisos sinceros e esperança no tom da fala. O vídeo mescla esses momentos com informações da vida de Nick, a falta congênita de seus membros, seus projetos filantrópicos, sua família, sua paixão por golf.

De repente, as imagens focalizam os rostos dos espectadores. Olhos marejados com lágrimas escorrendo enquanto Nick continua a motivar-lhes e a dizer: “A vida é boa! Se eu consegui sem meus braços, claro que vocês conseguem!” A plateia vai ao delírio e todos aplaudem Nick pensando: se até ele é feliz, sem braços e pernas, do que eu posso reclamar, meu Deus? Nick sorri o sorriso dos justos enquanto agradece com a cabeça os efusivos aplausos. Mas o Gran finale está sempre no por vir. Nick oferece uma sessão de abraços a seus espectadores ao fim de sua palestra. Todos aproveitam a oportunidade de abraçar esse exemplo de vida sem braços que é Nick Vujicic e tentam, talvez, sublimar seus pecados se aproximando de tamanha figura inspiradora. Nick é abraçado sistematicamente em meio a muitas lágrimas e soluços de sua plateia.

Essa é a lembrança que tenho de quando assisti a performance de Nick. Me lembro também de ter ficado extremamente incomodado com seu discurso motivador, centrado em sua vida particular e nas suas conquistas, perante uma plateia de ‘normais’ que o olhava como um messias, um salvador desmembrado. Mas o ápice de meu incômodo foi quando a sessão de abraços começou. Pensava: como esse cara pode se aproveitar desse sentimento de resiliência coletivo, isso é, de encarar as dificuldades da vida, e se autotransformar na própria substância corporal da dificuldade a ser superada? Por que ele se coloca, por não ter braços e pernas, nessa posição de exemplo vivo da superação para uma plateia de ‘normais’? O que significa as pessoas chorarem tanto ao ver um indivíduo deficiente a ponto de considera-lo um guru da vontade, da liberdade e da independência humanas?

 Essas questões ficaram em suspenso na minha cabeça e corpo deformado. Diferente de Nick, eu possuo todos os membros do corpo, mas somente meu braço direito ainda funciona um pouco. Ao longo do tempo comecei a me questionar: será que é por isso que as pessoas ‘normais’, quando me veem na rua, ficam me olhando intensamente? Será que elas gostariam que eu as deixasse me abraçar para que eu sussurrasse em seus ouvidos: “se eu, nessa cadeira de rodas, com apenas um braço consegui, você também consegue!”? Será que é daí que vem o choro e as lágrimas de tantas pessoas desconhecidas que já me abordaram nos mais variados lugares me dizendo que eu sou um exemplo de vida? Será que para elas meu corpo é uma maneira de encararem seus medos, frustrações e dificuldades? Meu corpo aleijado é santo ou demônio?!

 Alguns anos se passaram, aprendi algumas coisas sobre essa ‘economia da pena’ que muitos e muitas deficientes estão inseridos e, recentemente, descobri que Nick vucivij esteve no Brasil no mês de dezembro fazendo um grande ciclo de palestras motivacionais em 5 grandes capitais. O evento foi sido amplamente divulgado nas redes sociais para venda de ingressos. Inúmeros vídeos circularam no Facebook com depoimentos de artistas brasileiros e brasileiras chamando para os grandes eventos que serão as falas motivacionais de Nick. Nos vídeos publicitários também temos os depoimentos do sorridente e intrépido Nick, dizendo de seus afazeres familiares, de seus negócios filantrópicos e sua militância cristã, além é claro de dizer que ama golfe.

Comecei a me sentir mal e incomodado ao perceber tamanho incentivo a um discurso de superação do porte daquele oferecido por Nick e sua organização não governamental filantrópica. Nick e seu sorriso humanitário, de vencedor, são explorados nos vídeos promocionais e prometem motivar a todos os que comprarem os bilhetes, com preços podendo chegar a 2.000, 00 R$, para as apresentações.

AFINAL QUAL O PROBLEMA COM A VISITA DE NICK VUJICIC NO BRASIL?

Nenhum. Meu incômodo, e o que tento expor cuidadosamente nesse ensaio, é com a imediata ligação entre um tipo específico de corpo, nesse caso o de Nick, e o discurso paradoxal da superação desse mesmo corpo como fundamento de uma dupla restauração moral: individual e coletiva. Imediata por que, na verdade, existe uma ligação direta entre ‘ter um corpo diferente’ e ‘sofrimento’ que leva a superação de uma moralidade ‘defeituosa’

Aposto que muitos e muitas de vocês já ouviram muito a expressão que é considerada erroneamente um bom contra-argumento à discriminação de pessoas com deficiência: a pior deficiência é o caráter. Ou seja, o modo que Nick Vujicic explora sua corporalidade ‘defeituosa’, o que lhe rende uma “vida sem membros”, produz em sua plateia o sentimento de <consternação>.

 Consternar-se é sentir-se triste, possuir um pesar, ser abalado surpreendentemente por algo que nos faz voltarmos a atenção para nós mesmos, para nossas condutas pessoais. Em suma, é se deparar com uma ‘realidade’ triste, cruel, mas que nos ensina algo bom, positivo. Nesse sentido, Nick Vujicic é uma <inspiração>. Ele mesmo diz, em um dos vídeos promocionais de sua palestra no Brasil, que não há nada de bom em nascer sem os membros, que ele não escolheu isso, mas que também não podia se abater pelo que foge de seu controle. E é nesse ponto que Nick moraliza seu corpo como uma ‘fatalidade’, uma ‘tragédia pessoal’ para depois se colocar como um ‘milagre’ por ter conseguido superar anos de discriminação e depressão:

NICK VUJICIC não tem braços nem pernas, mas já viajou pelo mundo como palestrante motivacional impactando milhares de pessoas com sua trajetória de vida. \ Milagre? Sim, Nick nasceu em 1982 na Austrália com uma rara síndrome que geralmente leva à morte. Após o choque, ele e sua família aprenderam a se adaptar e a lidar com a nova realidade.

 Conforme vamos adentrando na narrativa que Nick construiu para si mesmo e sua organização caritativa, e obviamente para vender suas palestras, vemos que nosso herói parece ser uma ilha. Ficamos com a impressão que Nick superou todas suas dificuldades, advindas do puro preconceito das pessoas sobre seu corpo sem membros, sozinho. Sentimos que Nick é uma força paradoxal da natureza ou da força divina, como ele acredita. Ele se considera um milagre. E todos sabemos que milagres, verdadeiros ou não, significam coisas especiais, excepcionais por não acontecerem sempre. E a função do milagre é exatamente essa, mostrar que o impossível de acontecer já aconteceu e que nos resta, efetivamente acreditar que ele pode acontecer novamente ou ser reproduzido de alguma forma. Nick opera sua personalidade e seu sucesso pessoal como um milagre divino. E é quando acreditamos piamente em seu olhar doce e calmo que seu corpo se torna um mero apêndice de sua existência resiliente: não importa que tenhas nascido sem braços e pernas – nos diz – com força de vontade poderás fazer o impossível! Essa é a grande narrativa de nosso palestrante ‘sem limites’.

 Meu incomodo com Nick não é pessoal, mas político. Mesmo Nick não utilizando o termo ‘pessoas com deficiência’ para se auto referir, algo que também não aparece nos vídeos e chamadas promocionais de sua palestra, todo um ‘espectro da deficiência’ rodeia a estética e as estratégias de suas apresentações. Historicamente a deficiência é um termo e uma categoria ambígua: ela é tanto uma categoria descritiva em poder das tecnologias medicas de mensuração das capacidades corporais humanas, quanto um termo usado politicamente por pessoas que são consideradas com problemas corporais de funcionamento.

 Os ativistas deficientes, a partir da segunda metade do século XX passaram a acusar as instituições sociais, como a biomedicina, a escola, a religião, de controlarem as suas vidas a partir da consideração de que seus corpos lhe trazem dependência. Ser corporalmente dependente, de acordo com essas instituições, é ser incapaz de tomar qualquer outra decisão na vida. As pessoas deficientes acusavam a vigilância sobre seus corpos ‘defeituosos’ de ser fruto da consideração de que as desigualdades sociais são, de alguma forma, correspondentes a suposta natureza falha de seus corpos. Ou seja, para a medicina e para certo pensamento religioso, um corpo ‘sem defeitos’ é sinal de saúde; nascer ou adquirir alguma diferença corporal que se considere uma deficiência é sinal de mal-estar ou tragédia pessoal. Isto é, o corpo do indivíduo é a fonte de explicação das desigualdades sociais experimentadas por ele.

 Portanto, foi com esses movimentos políticos deficientes que aprendemos que nossos corpos ‘problemáticos’ e dependentes de ajuda não são falhas orgânicas ou castigos divinos. Aprendemos que até mesmo o que se considera falha ou divino, depende de considerações culturais e sociais estabelecidas. Nesse sentido, quando somos acusados de não conseguirmos fazer coisas ‘normalmente’ em nossa sociedade, podemos pensar que não é nossa culpa ou culpa de algum problema corporal que tenhamos; passamos a considerar que é a própria organização social e cultural que possibilita reconhecermos determinados corpos como ‘normais’, belos e saudáveis e corpos anormais, dignos de pena ou de uma admiração quase que religiosa. E aqui vai a lição mais valiosa de todo movimento político deficiente contemporâneo: se é a cultura e a sociedade que define, em última instancia, quais defeitos vão ser aceitos como inspiração moral e quais pessoas serão consideradas dignas de pena, é a sociedade e a cultura que temos que modificar.

 O discurso de Nick, apesar de vagamente aludir aos ensinamentos políticos dos movimentos deficientes com relação a seu corpo não ser limite a ele, não consegue atingir a realidade social e cultural das pessoas com deficiência como causa da segregação política a qual nos encontramos. O discurso de Nick, ao mesmo tempo, sublima, se transforma na única nuvenzinha branca de um céu de brigadeiro, o corpo, a sociedade e a mutua relação de ambos. Para nick vujicic nem seu corpo nem sua sociedade foram páreos para sua força de vontade de viver, de alcançar metas, se formar em contabilidade, de se casar, ter filhos, dirigir seu próprio carro, jogar golfe e dizer para as pessoas: “voces conseguirao tudo isso sozinhos! Basta me pagarem 200 dólares que eu conto como operei meu próprio milagre em mim mesmo!

INDEPENDENTE, POIS INTERDEPENDENTE!

Uma das principais tarefas do ativismo deficiente a partir da segunda metade do século XX foi a ressignificação da ideia de independência. Diferente do sentido individualista que Nick põe em suas conquistas pessoais – uma vez que seu discurso é de superação solitária sobre seu próprio corpo problemático – a deficiência pode ser símbolo de interdependência e de geração de mobilização coletiva com fins comunitários. Interdependência, talvez, seja a condição que possibilita as pessoas deficientes viverem pra além da sobrevida.

Ser interdependente é reconhecer uma condição de existência que é relacional, por mais contraditória e conflituosa que pareça. A ênfase que Nick dá para a superação de seu próprio corpo, como se o seu corpo fosse seu único problema, acaba por tornar sua realidade corporal um apêndice de toda sua vivência. Sabemos que os corpos dos indivíduos não são simplesmente empecilhos para suas realizações sociais; fazemos coisas a partir de nossos corpos, com nossos corpos, sejam eles desmembrados ou não.

No último 3 de dezembro de 2016, dia que se comemora internacionalmente a luta por direitos das pessoas com deficiência, um grupo de ativistas brasileiros e brasileiras lançaram a campanha Capacitismo Não! junto com a hashtag #ÉCapacitismoQuando. A campanha trouxe à tona uma série de depoimentos das pessoas com deficiência denunciando e mostrando os modos de relacionamento capacitistas que operam em nossa sociedade. Capacitismo é tanto uma forma de discriminação e preconceito contra as pessoas com deficiência como uma forma de interpretar os corpos dos indivíduos deficientes como empecilhos que precisam ser, de qualquer forma, superados.

A postura de figuras como Nick Vujicic com relação a seu corpo e seus limites acabam por reforçar, paradoxalmente, as atitudes espantadas e capacitistas com relação a indivíduos com corporalidades, formas e funcionamentos diferentes da considerada norma humana. Mas, felizmente, temos ativistas deficientes por aqui que cada vez mais demandam: nada sobre nós, sem falarmos criticamente que nossos corpos importam!

2 comentários em “#ÉCapacitismoQuando: Nick Vujicic vem para o Brasil!

  1. Marco, adorei o texto. Ele traduz também o meu incômodo com o discurso da superação. Ninguém supera seu próprio corpo ou vive apesar da deficiência mas sim com ela, em composição com essa condiçăo e com uma rede de autonomia. Mas o discurso da superação vende muito…

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